17.4.07

quoting (10)



"crónica do hospital

para a rita e para o henrique bicha castelo, que mereciam mais que este texto, com o amor e a gratidão do antónio

não quero aqui ninguém. quero ficar sozinho a medir isto, a minha mortalidade, o meu espanto. por mais que repetisse
- um dia destes
não acreditava que o dia destes chegasse. e agora, março de 2007, veio com a brutalidade de uma explosão no peito. não imaginava que fosse assim, tão doloroso e, ao mesmo tempo, tão pouco digno como a velhice e a decadência. tão reles. o olhar de pena dos outros, palavras de esperança em que não têm fé, dúzias de histórias de criaturas que passaram por isso que tu tens agora e estão óptimas. recuperando aos poucos da anestesia vou dando-me conta de que um bicho horrível em mim, ratando, ratando. dois sentimentos opostos
-vou lutar, não vou lutar
e o primeiro fala antes do outro
-chamem o Henrique
um grande cirugião, um colega de curso, um amigo, uma das muito poucas pessoas a quem entregaria sem hesitações o meu corpo. este texto talvez vá um pouco desconexo, desculpem, ainda estou fraco, a cabeça tem lacunas, falta-me vocabulário, há mais de nove dias que não pegava numa caneta e é difícil reaprender a andar. o meu medo que o henrique não pudesse. mas disse a quem lhe fala
- eu vou já lá abaixo
e enquanto me faziam uma tac vi-o atrás do vidro, sério, a apertar a boca. depois veio ter comigo
- operto-te amanhã de manhã
e queria que soubesses, henrique, a esperança que as tuas palavras me trouxeram. não só esperança: o que não sei dizer. ou antes sei mas tenho vergonha. contento-me em pensar que tu sabes. basta a maneira de protestares, de mão contrariada
- não me agradeças, não me agradeças
basta o teu afecto pragmático diante das minhas perguntas
- uma coisa de cada vez
o modo como me disseste
- eu trato-te
como diante da minha aflição, aflição sim senhor, deixemo-nos de tretas
- e se houver metástases no fígado?
- eu tiro-as
e eu tentanto pôr-me no teu lugar pensando como deve ser penoso operar um amigo. um amigo desde os dezoito anos. em como deve ser penoso, em como deve ter sido penoso para o henrique trabalhar com uma carga afectiva em cima dele, naquelas circunstâncias. mexeu-me todo: tirou vesícula, tirou o apêndice, até as glândulas seminais andou a ver. isto há dez dias, onze dias. escrevo do hospital onde estou, é a primeira vez que uma pessegada destas me sucede. magro, magro. com uma algália ainda: é uma sorte que uma algália ainda, tive mil trezentos e seis tubos a saírem de mim. espero que na revista entendam a caligrafia tremida da crónica. suceda o que suceder, uma coisa tenho por certa: isto alterou, de cabo a rabo, a minha vida. ignoro em que sentido, ignoro como.
sei que alterou. santa maria. o que farei daqui para a frente, se existir daqui para a frente? livros, claro, foi para isso que me mandaram para o meio de vós. quando isto sucedeu lutava com um, tinha outro pronto, já antigo, pronto há um ano e tal, para outubro. para dar tempo aos tradutores de o traduzirem e saírem mais ou menos na mesma altura que em portugal. esse livro tem a melhor prosa que fiz até hoje,parece recitado por um anjo. aquele em que trabalhava é apenas um embrião, cerca de metade do primeiro esboço, falta-lhe quase tudo. a partir de agora, se calhar, falta-lhe tudo. voltarei a ele? Uma coisa de cada vez, não é henrique? vamos a ver. de uma forma ou outra a gente luta sempre. momentos de quase esperança, momentos de desânimo. não: momentos de muito desânimo e momentos de desânimo maior, como se me obrigassem a escolher entre o que não vale nada e o que vale ainda menos. este mês deram-me um prémio literário. estão sempre a dar-me prémios e claro que tenho prazer nisso, não sou mentiroso nem hipócrita. toda a gente foi muito simpática.
e sem que ele sonhassem
(sonhava eu)
o cancro
ratando, ratando, injusto, teimoso, cego. mói e mata. mata. mata. mata. mata. levou-me tantas das pessoas que mais queria. e eu, já agora, quero-me? sim. não. sim. não - sim. por enquanto meço o meu espanto, à medida que nas árvores da cerca uns pardais fazem ninho. a primavera mal começou e eles truca, ninho. obrigado, senhor, por haver futuro para alguém."


[lobo antunes]

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