9.5.07

quoting (11)


"cem dias e cem noites passaram sobre a última madrugada vivida no pátio da luz e de sombras que me há-de acompanhar até ao último dia.
cem dias e cem noites, o tempo preciso para voltar a acreditar que existe mesmo uma possibilidade de ser tão feliz ali como em qualquer lugar.
cem dias e cem noites, um tempo exacto e geométrico. o tempo que as coisas demoram a assentar. a esquecer e a lembrar. a curar e a apagar.
no dia em que voltamos juntos ao lugar onde tudo ficara desenhado no chão para, um dia, recomeçar, as primeiras pedras e os primeiros ferros já estavam de pé. fortes, consistentes e, no entanto, ainda frágeis como o caule dos lírios e transparentes como o vidro das janelas onde, na derradeira madrugada, os mosquitos bateram aflitos e morreram cegos pela luz.
a água da barragem transbordou e o lago espelha agora um céu ainda maior. infinito, onde cabem quase todas as nuvens e, ainda, as sombras das árvores, das canas e dos juncos que antes não se viam por estarem para lá da cerca de madeira.
a água, batida pelo vento de outono, corre veloz como se houvesse naquele lugar alguma pressa. uma urgência de voltar para ficar.
espalhados pelo chão, os montes de areia, de terra húmida, de pedras e tábuas desalinhadas, dão a este lugar um ar de desordem, de caos instalado. e, no entanto, é apenas mais uma ilusão.
por detrás de cada pedaço de lama cinzenta arrancada debaixo do chão e posta de lado para voltar para de onde veio, existe uma teia invisível de ferro e pedra, escrupulosamente tecida para travar a terra e conquistar o espaço subterrâneo por onde corre o labirinto de esquadrias que hão-de voltar a sustentar paredes, o telhado e grande parte da nossa existência.
o vento, incessante, atravessa todo o campo fazendo inclinar as ervas e o que resta de seara à sua passagem e trespassa a copa das árvores que balançam, mas não vergam. as árvores antigas foram plantadas com ciência, do lado de lá da barragem, no monte que se eleva subtilmente a partir da linha de água e se estende para trás, a perder de vista.
as árvores mais novas foram impecavelmente alinhadas do outro lado, num bosque infantil feito de alamedas rectas, cobertas de musgo, trevos e folhas ocres.
ao longe, mesmo muito longe, uma linha de plátanos cor de fogo parece suspensa no fio do horizonte. no crepúsculo, o amarelo quente que se desprende das suas folhas ilumina o céu e chega a confundir-se com o sol poente.
do lado oposto, o sol a pique mostra onde está o norte e o sul, cobre a terra de sombras e espalha cores impossíveis. uma paz absoluta também.
ninguém fala porque ninguém quer quebrar o silêncio nem dissolver a perfeição dos minutos que se sucedem. lentos, leves irreais.
de repente, um barulho desperta outros sons. um riso infantil revela o esforço de ganhar balanço para subir ao monte de areia mais alto, o grito da primeira cigarra que pressente a escuridão antecipa a noite e as rãs mergulham devagar porque reconhecem aquela hora no seu elemento. das árvores desprende-se o inconfundível som vegetal das folhas que estremecem e se tocam, o vento voltou e a luz vai-se diluindo deixando um rasto de sombras cada vez mais escuras e pequenas luzinhas que, silenciosamente, se acendem nas casas ao fundo. num instante a terra fica mais escura do que o céu e as primeiras estrelas são estas que aparecem rentes ao chão. por magia. como se fosse possível suspender o mundo e vira-lo ao contrário sem perturbar a quietude e a ordem das coisas.
ao longe, uma voz distraída canta sozinha fragmentos dispersos de canções infantis. cala-se, enche o peito de ar, apanha mais uma vez balanço e chega, finalmente, ao cimo do monte mais alto.

- vou ser feliz! - grita.


o grito dissolveu-se no ar, mas ficou guardado no meu coração. para sempre."



[laurinda alves]

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