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It never rains but it pours
"naquele inverno eu sentia-me sufocar com a persistência do sol e de um céu invariavelmente azul. dia após dia, de manhã quando acordava e chegava à janela, nem sinais de chuva, vento, céu cinzento, já nem digo neve: enfim, nada que me lembrasse que era inverno. e como pode alguém desejar o verão, se o inverno mais parece um longo e interminável verão?
assim, juntei o sufoco a uma depressão subitamente planeada e resolvi meter férias e ir à procura do inverno, lá nessa europa, de onde a televisão me trazia imagens de inundações e tempestades e nevões. Peguei nos livros mais tristes que tinha pendentes de leitura, numa gabardine e um sobretudo, e embarquei em santa apolónia, ao fim da tarde, no lusitânia-expresso para madrid. reservei um beliche no vagão-cama e um lugar à mesa no segundo turno do jantar. Eu sozinho, num comboio atravessando países de noite, como a personagem de um filme (porque só nos filmes é que a solidão é romântica e natural, na vida real é angustiada...) : eis o que eu chamo viajar.
jantei a inevitável pescada com molho béchamel e vitela estufada com ervilhas, com meia garrafa do inevitável grão-vasco, na companhia do previsível casal de velhotes espanhóis, falando por sussurros, como convinha à minha aptência de mistério. quanto a mim, imginei-me agente secreto ou graham greene do Sul, sob a observação atenta e intrigada dos outros passageiros. como não alcancei ninguém com quem falar, imaginei-me aos segredos com a minha avó - com quem aprendi a andar de comboio e a rezar o "acto da contrição" de cada vez que atravessávamos a periclitante ponte de d.maria, de gaia para o porto.
felizmente, ninguém apareceu para compartilhar o meu vagão-cama e pude adormecer sem as habituais cautelas de um agente secreto nestas circunstâncias. cheguei a madrid de manhã cedo e, depois de um sólido pequeno-almoço, enfiei-me no Prado a ver a exposição de um dos meus pintores-fetiche, que eu tinha como um segredo bem guardado: caspar-david friederich, um romântico alemão, meticuloso, alucinado e luminoso. e, porque nunca o verei vezes que cheguem até que a morte nos separe, gastei ainda meia-hora, entre os encontrões, excursões e raros momentos de trégua, diante do mais fantástico quadro que alguma vez alguém pintou ou pintará: as meninas, do velásquez.
junto à plaza mayor, procurei e descobri um restaurante basco cuja recordação guardava num canto da memória. comi o que eles chamam de "besugo" e que eu chamo de pargo e a que os deuses chamarão milagre. esta, para mim, é a melhor cozinha do mundo e este primeiro dia "na europa" começara esplendorosamente: velásquez, caspar-david friederih, besugo à basca e, a seguir, um partagas lusitano, de uma caixa de 25 que comprei à saída do restaurante e que fumei sentado na mala que carregava comigo desde que saíra do comboio, encostado a um muro da plaza mayor, sob um céu finalmente cinzento e prometendo chuva.
e deu-me um desejo incontrolável de partida e de liberdade. entrei num rent-a-car e aluguei um seat marbella cor de trovoada e mandei-me para nordeste, na autopista para barcelona. livre, libérrimo, com vontade de rir e chorar, dono dos quilometros que percorria, das horas, da tarde que se foi desvanecendo e da noite que me apanhou num restaurante à beira do caminho, lendo o el pais e comendo "chuleta de ternera" com uma san miguel de pressão. fiquei dois dias em barcelona, dos quais uma manhã mergulhado na pesquisa meticulosa de uma extraordinária loja de velharias do bairro gótico, de onde saí com uma ordem de lenine, uma convocatória da legião estrangeira e una fantásticos binóculos dentro de um estojo de couro marcado "SS Bremem, 1912". passei outra manhã a ouvir um cego tocar violino em frente à sagrada amilia do gaudi, enquanto eu me esforçava por acreditar que era o único turista que tinha decifrado o mistério daquela catedral demencial, e também gastei duas noites como o único turista que jantou ao ar livre no port olimpic, comendo sumptuosamente e gelado até aos ossos.
de comboio, outra vez, segui pela côte d'azur parando para jantar e dormir em cannes e depois num pequeno e mágico hotel do laco di como, alternando jornais, línguas, vinhos e conversas de ocasião, com a intimidade e o destemor que só os viajantes solitários ousam.
a chuva chegou quando eu estava no lago- abundante, magnífica, devastadora. de novo me meti no comboio de noite e atravessei a toscânia adormecida, imaginado vinhas ao sol e terraços com vasos de cerâmica e colunas de mármore, florença cor de fogo debruçada sobre o rio, siena sob uma ligeira neblina de poeira suspensa no ar, mas, porque era inverno e finalmente chovia, e um vento de leste, frio e solto incomodava os passageiros petrificados nas estações que atravessávamos sem parar e arrastava guarda-chuvas perdidos e ramos de árvores na noite de itália, fui direito a VENEZA onde, há muitos anos atrás, numa ofuscante manhã de agosto, na praça pejada de turistas, eu jurara a mim mesmo só voltar quando fosse inverno, chovesse e toda a praça estivesse tão limpa como este coração que agora trazia comigo."
[miguel sousa tavares]
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Sabes? O titulo faz me lembrar aquela frase do Magnolia: "Things fall down. People look up. And when it rains, it pours"
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